sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"O DESCARTE"

(João Ubaldo Ribeiro)


Fico aqui, olhando este computador diante de mim, com sentimentos melancólicos. Não faz muito era considerado um verdadeiro "avião". Hoje já está perto de virar um sucatão.

Não me refiro às implicâncias e manias dele, que me chateiam desde que nos conhecemos. Acho que ele preferia que eu fosse engenheiro, ou exercesse profissão igualmente decente, e não a de escritor. E não se conforma que, ainda por cima, eu use um programa de processamento de texto considerado arcaico.

Isso porque me recusei a aceitar o excesso de frescuras dos programas mais recentes. Homem que é homem usa o meu programa ou equivalente, sem risquinhos vermelhos que só fazem atrapalhar, além de bonequinhos ridículos que de vez em quando resolvem aparecer.

E agora ele já apresenta claros sinais de decadência. Todos os dias, invariavelmente, ao ser ligado, inventa uma aporrinhação nova, a maior parte das quais consiste em me dar avisos sinistros, que se revelam mentirosos e a muitos dos quais já nem dou importância, notadamente um tal "estouro de pilhas" que não ocorreu de jeito nenhum, pelo menos de forma a lhe afetar o funcionamento posterior.

Outras vezes se recusa a abrir o nefando Windows e, quando desisto de fazer com que ele dê uma religada pelos métodos recomendados, desligo-o na marra e sou obrigado a um intolerável suspense, enquanto ele, depois de me recriminar cinicamente por tê-lo desligado da forma errada, conduz um teste do disco rígido, cujo progresso é representado por uma repulsiva linha amarela, que vai e volta, me dando sustos a cada hesitação. Mas, de modo geral, clico um OK no que quer que ele esteja dizendo e vou trabalhar do mesmo jeito, é pura implicância de velho mesmo.

Computador, como se sabe, fica obsoleto assim que retirado da caixa, com tudo o que traz dentro, e tudo o que se bota dentro dele é considerado mesozóico depois de duas semana. O sujeito chama um amigo para ver sua possante máquina nova e o amigo morre de rir.

No meu caso particular, o principal é o recluso quão imisericordioso escritor Rubem Fonseca, que, quando vem aqui, mal chega ao topo da escada, vislumbra o computador e tem frouxos de riso desdenhativo, iniciando uma saraivada de comentários humilhantes e falsamente comiserados.

O caso do meu, que tem uns dois ou três anos, já está ficando patético. Até algumas teclas se desbotam, a olhos vistos e, claro, não vendem teclas avulsas para substituí-las, pois a regra, em matéria de informática, é substituir logo tudo, mesmo porque, se você tentar substituir apenas uma parte, acaba envolvido em problemas somente solucionáveis pela Nasa.

Não posso dizer que vou sentir falta dele, porque nossa incompatibilidade, embora não excessivamente agressiva, é inegável. Ele nunca foi com a minha cara, sempre fez questão de demonstrá-lo e eu lhe retribuo na mesma moeda.

Mas de qualquer forma, ai que saudades que eu tenho do tempo em que as coisas não eram todas descartáveis, inclusive o conhecimento.

Meus amigos micreiros às vezes me aparecem com os olhos esgazeados e tiques nervosos, de tanto se angustiarem para permanecer relativamente a par das novidades, novidades estas que só aceito aprender quando a minha sobrevivência fica ameaçada, o que não é infreqüente para quem faz deste instrumento vilanesco sua ferramenta principal de trabalho.

Antigamente, o sujeito começava a trabalhar no jornal e o máximo que tinha de aprender era usar uma nova máquina de escrever - vamos dizer uma Remington substituindo uma Underwood. E ainda se queixava. Entrava, fazia carreira, passava no máximo por três tipos de máquina de escrever e reclamava.

Hoje, o infeliz tem de aprender um programa novo de computador a cada dois ou três anos, senão menos. E ai dele, se não aprender, porque, como tudo mais nesta vida de hoje, ele é descartável, ainda mais com as escolas de comunicação despejando gente nova no mercado de trabalho como uma cachoeira ensandecida.

Alguns de vocês devem lembrar-se das canetas-tinteiro. Eram objetos interessantes, com bombinhas engenhosas para os enchermos de tinta (Parker Quink era a mais reputada). A gente ganhava uma caneta e muitas vezes mandava gravar nela o nome ou as iniciais, porque a caneta não era descartável, era para durar pelo menos uma grande parte de nossa vida, até porque valia o esforço e era possível consertá-la, se viesse a ter algum defeito.

Hoje, a gente perde três Bics por dia e quem insiste em usar caneta-tinteiro é visto como uma curiosidade antiga, ou um pedante exibido e metido a excêntrico.

Isqueiro era a mesma coisa. Havia (ainda há, mas só meu dileto amigo Sebastião Lacerda os usa) os Ronsons, os Zippos e os luxuosos Duponts, só para ficar em alguns exemplos. Observa-se o ritual de mudar a pedra, botar fluido, ajeitar o pavio e, como no caso das canetas, mandar também gravar o nome. Agora não. Agora, como eu já testemunhei, o sujeito compra e perde airosamente três isqueiros só numa tarde de boteco e eu, como muitos outros, furto distraidamente isqueiros, enfiando-os no bolso e os encontrando no dia seguinte sem remorsos, porque sei que o dono não está nem aí.

É melancolia, melancolia, tudo é descartável. Daqui a uns meses, nem vou lembrar-me deste computador direito e estarei arrumando encrencas e discussões abstrusas com seu substituto.

Mas é preciso que nos adaptemos aos novos tempos, não podemos ficar parados. Eu, com quatro filhos solteiros, já tive acho que umas três noras e uns dois genros e estou preparado para quantos mais aparecerem, bastando apenas tomar um fosfatozinho (sou do tempo do Iofoscal) para me lembrar dos nomes.

É a vida - marido e mulher estão cada vez mais descartáveis. Assim como jornal também. Espero que a página desta crônica tenha um destino mais nobre, antes de ser devidamente descartada. A permanência destas letras pode muito bem terminar em glória, embrulhando um peixe ou forrando uma lata de lixo. Sou muito saudosista.



Obs.: Amo os textos de João Ubaldo Ribeiro e de Luis Fernando Veríssimo ..

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