sexta-feira, 25 de setembro de 2009

SOBRE PEIXES E AFETOS


um devaneio acerca da ética no direito de família.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Doutora e Livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).


“Mas há também os céus e as matas que se enchem de cantos de sabiás... Lá, as redes dos cientistas ficam sempre vazias.”
(Rubem Alves)


Ø Palavras iniciais

Caros amigos, neste Congresso,

Inicialmente, quero lhes falar um pouco sobre “ciência” e sobre “verdade”.
Depois, quero lhes falar de “afeto”. De afeto como atributo essencial das relações familiares.
Depois, ainda, quero lhes falar de “coragem”... coragem para considerar o afeto.
Estas considerações breves são retiradas de minhas reflexões acerca do assunto, tendo como ponto de partida, ou como start singular, o texto de Rubem Alves que fiz fosse colocado em suas pastas de congressistas, sob a finalidade de que fosse lido antes, a priori, como preparatório deste nosso encontro.


A vida sempre termina por nos ensinar, mais cedo ou mais tarde, que ciência e verdade não são conceitos, concepções ou idéias que tenham um delineamento standard, um padrão imutável, um perfil definitivo.


Acabamos por aprender que as verdades inteiras são perigosas, exatamente porque querem fechar suas muralhas sobre o construído, de molde a não permitir re-organizações, re-modelações, re-arranjos. É mais seguro, por certo, não mexer muito nas coisas ou nas idéias, pois tudo que se contém dentro de um formato imutável, tende a parecer mais seguro.
Na percepção de justiça, por exemplo, aquilo que se apresentar de modo repetitivo, encaixado em formulações pré-estabelecidas, aquilo que se multiplicar tantas vezes quanto seja desejável fazê-lo, tende a parecer mais seguro e, daí então, deve decorrer a idéia de segurança jurídica, este padrão aprisionador de concepções, este denominador comum de repetição, este paradigma inacreditavelmente inamovível... Numa idéia assim – restrita e fechada, e por isso mesmo segura – não há lugar para se pensar o novo, para se adequar o tempo, para fazer fluir apenas o justo. Parece que, neste tipo de concepção mais restritiva de justiça, tenha sido preferível a justiça segura à justiça justa...


Sobre isso quero lhes falar. Sobre preconceitos relacionados à mudança e sobre o medo de mudar. É a isso que chamei de “Peixes e afetos: um devaneio acerca da ética no direito de família”.

Ø
E, enfim...

Não é só de ciência que vive o verdadeiro.
O verdadeiro que quer ser reconhecido como o provavelmente verdadeiro, aquele no qual não cabe superstição nem dúvida, aquele no qual a probabilidade da certeza foi alcançada, este reino é, sim, o reino da ciência.


Mas não é a toda pergunta que esse reino satisfaz.
Esse reino da ciência, que tem prováveis respostas certas para tudo – mesmo que a resposta certa seja que não há resposta, ou que não há certeza –, não tem resposta para as perguntas daquele outro reino, o dos sonhos, o da imaginação, o do desejo, esse reino que habita o ser humano ou que é habitado por ele tanto quanto o reino da ciência, que é o reino da razão.
Razão, todos nós a temos, pois todos somos racionais, mesmo que à revelia...
Da mesma maneira que todos somos seres imaginantes, seres desejantes, seres sonhantes, ainda que à revelia também...


Temos a razão e o sonho à mão; e podemos livremente caminhar por eles, sempre, desde que seja seguido o que cada reino exige.
A razão exige que se saiba o que as coisas são, que se pense com clareza, que se construa a consistência do discurso e da existência...


A desrazão – para juntar numa palavra tudo o que é o outro da razão: a imaginação, o desvario, o sonho, a crença, o desejo... – exige que não se sigam regras, e que o verdadeiro seja alcançado somente por distração...


Dois reinos, mas não dois senhores.
Dois planos pelos quais cada um de nós passa, a todo o momento, mas sempre dependendo daquilo que se busca, ou dependendo dos quais se sinta habitado, ou ainda dependendo dos quais se reconheça habitando...


Por tudo isso, algumas vezes me volta à mente aquele texto de Rubem Alves denominado O que é científico? no qual o autor narra seus incômodos ao ter sido perguntado exatamente desta forma: o que é científico?


Ele se refere ao colega que lhe chega reclamando que não querem publicar o seu livro – sobre a sua experiência com a criação de um sabiá – porque “não é científico”. Daí a pergunta deste seu amigo: “Rubão, o que é científico?”... E a resposta do Rubão vem em forma de uma estória, a qual poderia ser condensada assim, quem sabe:


Numa aldeia, ao lado de um rio em que nunca se pescara, surgiu um dia um pescador. Desacreditado de início, ao mostrar resultado com sua rede de pesca (pois apanhara um peixe dourado), passou a ser seguido, imitado e acompanhado, e disso surgiu uma confraria de pescadores. Estes confrades-pescadores, depois de passado algum tempo, só pescavam (todo tipo de peixe) e só falavam em pescaria (para o que inventaram até uma língua esotérica, o ictiolalês). Isso causou, primeiro, o desinteresse dos membros da confraria por tudo o que não fosse peixe pescado por eles e, segundo, a clivagem com o mundo dos não-pescadores, que não os compreendiam, que não falavam a sua língua, nem a eles tinham acesso. Resultado: de um mundo inicialmente sem pescadores, passou-se a um mundo dividido entre pescadores e não-pescadores, cuja comunicação tornou-se impossível – porque não falavam mais a mesma língua, porque não desenvolviam mais a mesma atividade – e trágica – porque, no fundo, continuavam, todos, buscando a mesma coisa: reconhecimento.

Essa é a súmula da estória contida no texto citado.
Essa estória retrata aquilo que é o avesso da ciência tida exatamente como tal; quer dizer, retrata a ciência arrogante, a ciência que não se quer, a ciência que tem por extrato a idéia certa de que detém a verdade – não a provável verdade, mas a verdade perfeita, a verdade arrogante.
Nela, então, cuja moral indica que ser científico é fazer parte de uma certa confraria que se quer inacessível ao que está fora dela, mas que, com isso, é também condenada a não ter acesso a esse mesmo exterior, a ciência – aqui retratada por esse seu avesso – acaba por se desenhar como uma vilã: ela é uma instituição criada para instaurar-se como um poder excludente, perturbando a ordem de um mundo no qual outrora certamente não havia conhecimento científico, mas teria havido paz.


A aldeia (onde nunca se pescara) é o mundo humano antes da invenção da ciência, ou o mundo humano fora da intervenção da ciência. O pescador que aparece do nada é o cientista (ou o filósofo, ou o sábio, ou o racionalista etc.). Os aldeões (o mundo em volta do cientista) de início riram-se do pescador, como ririam de tudo o que é novo e extravagante. Eis a cena, eis o script e eis os atores.


Felizmente, ninguém impediu o pescador de tecer sua rede (isto é, reconhecer uma pergunta e propor uma hipótese para solucioná-la), nem de ir ao rio (seu laboratório) jogar sua rede recém-inventada (seus instrumentos de pesquisa) e, como ele voltou com um peixe dourado (não só uma resposta, mas uma resposta verdadeira), os risos em volta dele se calaram (a resposta da ciência não é uma teoria: é um fato).


Não à toa, passou a ter seguidores, pois até os não-cientistas buscam o verdadeiro. Mas, um belo dia algo deu errado, ou mudou de curso para um curso violento: a prática coletiva da pescaria, certamente comunitária de início, virou confraria de iniciados...
Daí em diante, os pescadores pescavam todo tipo de peixe, mas desaparece da narrativa o peixe dourado. Haveria peixes dourados (respostas verdadeiras) entre os peixes (meras respostas) de todo tipo, coletados em massa pela confraria dos pescadores (a comunidade de cientistas profissionais)? A fábula não o diz, mas deixa a questão em aberto...


Ao que tudo parece indicar, no entanto, a resposta seria negativa, quer dizer, entre os peixes de todo o tipo, não havia mais peixe dourado... Porque, ao tempo do peixe dourado – quando os membros da confraria ainda não falavam exclusivamente ictiolalês –, era possível, a quem estivesse fora da pescaria, reconhecer o valor da pesca; mas, depois da transformação desta pescaria numa arte excludente, nunca mais houve comunicação entre o lado de dentro e o lado de fora, ou seja, entre os que falavam ictiolalês e os que não falavam. Isso não seria problemático se, nesse movimento de separação, não se operasse uma decisão autoritária: negar que o outro – só por ser outro – tenha qualquer valor. É aí que a confraria de pescadores aparece como uma confraria do mal: ela quer dominar o mundo da verdade, dizendo que o que não é dito por ela nem sequer existe...


Essa ciência, tal como aparece na estória, é certamente uma tirana: quer, sozinha, ser detentora da verdade. Mais “Círculo de Viena” (nos primeiros anos) do que isso seria impossível: o que não é dito pela ciência não apenas é falso, como sequer faz sentido! teriam dito os membros do Circulo de Viena, nos idos da década de 20, do século passado...


Todavia... e esta é a pergunta para a reflexão: será correto, será lícito depor essa tirana, a ciência vista assim, por esse seu avesso, por esse seu lado arrogante? Ela só aparecerá desta forma, como um algoz, como um déspota, se nós, estejamos no lado da ciência, ou no lado da não-ciência, a concebermos assim, como um poder.


Será que ela é mesmo um poder? Será que o verdadeiro é um campo de batalha, que só pode ser conquistado à força? Ainda que ela tenha se transformado nisso, parece que não nasceu assim, mas só se tornou um poder a partir do momento em que criou uma linguagem que é só dela e declarou que, a partir daquele momento, a verdade só existiria se fosse dita exclusivamente por aquela linguagem. Como no caso dos pescadores que falavam ictiolalês...


É assim, sim, o que esta ciência arrogantemente diz: só é válido para a ciência o que é dito com as palavras da ciência. É algo frustrante para quem está do lado de fora. Mas – observe-se com atenção – é isso, também,[3] exatamente o que todo discurso “não científico” (como a religião, a teologia, a ideologia, o bom senso, a opinião, o grito de dor...) diz: só é verdadeiro, para si, o que é dito nos seus termos.


A teologia, por exemplo, reclamará que a ciência não lhe dá assento às suas teses no panteão da verdade, e então, em represália, recusará à ciência validade no terreno das verdades da fé, isto é: que o mundo foi criado por Deus e não mais é verdade que viemos da evolução ou que o universo tenha surgido de uma grande explosão.


E assim por diante...
Por isso, a fábula narrada por Rubem Alves é feliz ao acusar a tirania da ciência, mas é feliz, acima de tudo, por acusar a tirania de qualquer poderio excludente.


Uma tal conclusão, todavia, não é uma denúncia inquisitorial. Não é que, por assim refletir, devamos jogar a ciência na fogueira, nem mesmo a teologia, nem a opinião mais canhestra, mesmo quando cada uma delas, de forma birrenta, bater o pé afirmando que está, só ela, com o verdadeiro em mãos...


O que vale a pena fazer – e, provavelmente, é a isso também que a fábula dos pescadores nos conclama – é não transformar a linguagem do outro numa linguagem proibida para nós (não importa quem sejamos nós), isto é, não transformar a linguagem do outro numa linguagem que não merece ser usada, nem sequer conhecida, por nós.

Refleti desta maneira, a partir da fábula dos peixes...
Mas ... e o afeto? Como vou realizar este link entre “peixes” e “afetos”?

Diante do texto de Rubem Alves acorre-me a consternação de me lembrar daquela certa dificuldade que os civilistas – em especial os familiaristas – têm em lidar com essa coisa tão não jurídica – e, por isso, como indica a fábula, tão “irreal”, tão “sem sentido” para eles – que é o afeto.


A menção ao assunto, quando posto na roda, tem me sugerido, eventualmente, que alguns familiaristas – pescadores de uma confraria que fala uma singular, restrita e especial linguagem – quando convidados a pensar no afeto (segundo meu ponto de vista sempre embutido em todas as relações familiares) têm demonstrado – de modo geral, mas não exclusivo, é claro – um enorme receio, um grande medo... Medo de enfrentar o que não conhecem, juridicamente. Medo até do ridículo, quem sabe...


Lembram-se da fábula de Rubem Alves?


“Todos se riram dele quando ele caminhou na direção do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou. Armou a rede como pôde e foi dormir. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado. Foi aquele alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham estado tentando pegar as criaturas do rio com fórmulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitiçaria. Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que sua rede apanhara, eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira.”

Como também a fábula pode ilustrar, o que pode estar por trás da recusa em aceitar a linguagem do outro é um medo de ser engolido por ele, de ser dominado por ele, de perder o poderio sobre o terreno das verdades.


Como se fosse necessário ter esse medo... Como se fosse verdade que a verdade é um campo de batalha no qual uns devem morrer para outros dominarem. Pois, na verdade (ou, em verdade), se pensarmos no específico campo do direito de família, esse terreno do direito civil no qual nada pode ser mais lógico do que instalar a discussão – filosófica, ética, psicológica e seja mais lá o que for – em torno dos afetos, veremos que esse terreno só perde enquanto prosseguir temendo conhecer esse tema de perto e reconhecê-lo sob as dobras de um viés não jurídico...
Se tomarmos a fábula dos pescadores como referência, veremos que ela cabe perfeitamente na reflexão acerca de uma confraria jurídico-processualista-civilista-familiarista contra tudo o que é não jurídico, ou o que é não processualista, e mesmo o que é não civilista, e, mais ainda, até contra o que é não familiarista.


Perguntamo-nos, então, privilegiadamente assentados no desatino da simples curiosidade: os familiaristas (isto é, os que lidam com direito de família) não seriam, na verdade, pescadores que não apenas não mais conseguem descobrir a riqueza da natureza fora do rio em que pescam, mas que nem sequer conseguem mais pegar o peixe dourado do seu próprio rio?


Pode ser que sejam pescadores que nem mesmo saibam ou queiram fazer novas redes, ou não sabem – infelizmente – que rede é aquele objeto estranho descrito por Rubem Alves: uma porção de buracos amarrados por barbantes. E, bem por isso, provavelmente não podem se dar conta de que a importância dos buracos – e, assim, dos conflitos inócuos e vazios – residia apenas no fato de que ”eram para deixar passar o que não se desejava pegar: a água”; e nem que os barbantes – e, assim, o afeto – ”eram necessários para se pegar o que se deseja pegar: os peixes”.


Dito de outra maneira: os familiaristas não são, na prática, os profissionais do direito (estamos entre eles, também) que não mais conseguem reconhecer (ou temem reconhecer) que tantas verdades a respeito da vida em família irrompem fora da doutrina familiarista, assim como não mais conseguem reconhecer (ou temem reconhecer) que a própria estrutura jurídico-familiarista que se tem, hoje, perdeu de vista a preocupação com o sentido de justo na solução dos conflitos pertinentes ao direito de família e substituiu-a por preocupações que não são ou não estão mais conformes às necessidades dos seus intercedidos...


Essa curiosidade poderá parecer violenta ao familiarista mais desavisado, que se considerará até mesmo ofendido por ela. Bobagem. É inútil impedir as curiosidades, uma vez que elas apenas visam a abrir o caminho para a reflexão e a deixar o registro aproveitável, quiçá, para uma outra e próxima geração de familiaristas... quem sabe?

Questão posta.
Pode ser ignorada, ou pode ser levada adiante.

É o que estamos querendo recomendar intensamente, não por provocação, mas por interesse sincero na ética no direito de família, assim entendido o conhecimento do que é necessário segundo a natureza individual de algo, mas que absolutamente não é um poder.


Assim, procurar a ética no direito de família não é projetar um conjunto de preceitos morais para o advogado familiarista (isso seria transformar a ética num poder, dar o nome de ética a algo que não é ética), mas é buscar conhecer o que o direito de família é e não pode deixar de ser.


Onde procurar isso? No Código Civil? Nos livros de direito civil? Nos compêndios de direito de família? Na literatura esparsa – aqui e ali, já com sinais de coragem de falar duas ou mais linguagens – sobre a afetividade nas relações de família? Sim, também nesses sítios, é claro. Mas não em primeiro lugar.


Quero ousar considerar que qualquer concepção jurídica da família, e do que quer que componha a linguagem do direito de família, não pode fazer sentido se não se chegar a este manancial doutrinário já com uma concepção antes vivenciada acerca do que a família é.


Porque a família é um fato, assim como os conflitos também o são.


A afetividade, por sua vez, contamina o fato, nos seus desvãos positivos (e aí ela pode ser sinônimo de amor, de carinho), ou nos seus desvãos negativos (e então sua sinonimia se faz pelo avesso), tudo isso exatamente porque o afeto não é apenas amor, mas antes ternura. E a vantagem do afeto, compreendido assim, é a possibilidade da realização da ternura na vida de cada um dos membros de uma família e em cada relação familial que os envolva (de conjugalidade ou de parentalidade), tanto nos momentos de paz como nas ameaças de conflito.


Falo da bipolaridade do afeto, como se o quer descrever, aqui, para que ele seja, de uma só vez, o denominador comum das relações familiares, em qualquer tempo do desenvolvimento delas, em tempo de paz ou em tempo de conflito, e também que ele seja o paradigma da dimensão ética no direito de família.


Dito de outro modo: se a maior parte dos conflitos de família tem, como pano de fundo, as divergências relacionadas à aceitação do outro tal como ele é e deseja mesmo ser, como é possível a alguém (o advogado familiarista) atuar na esfera tão íntima de tais conflitos sem considerar tais idiossincrasias, sem observar que estas relações em conflito têm a marca diferenciada do afeto em sua base, característica completamente distinta das marcas que matizam outras relações humanas, conseqüentes no mundo jurídico?


Em nenhum outro lugar, que não a família, as dores, quando existem, são mais duras e angustiantes. Então, se houver conflitos, por que será que persiste, tantas vezes no seu trato, uma certa insistência em investir na morte e na adversidade (como se fosse sempre válido pôr fogo no conflito de modo a conduzi-lo a um mínimo de conciliação ou a um máximo de ruptura), quando está sempre nas mãos de cada um a chance de converter o desejo de dominar o outro (isto é, de determinar o que cabe ao outro a partir do conflito) numa postura de libertação do outro (isto é, de permitir que o outro se preserve), qualquer que seja o sentido da solução do conflito, o sentido da ruptura ou o sentido da conciliação?


Uma tal insistência (do advogado familiarista, de modo geral) em atiçar o conflito, ampliando-o para fora e para além de sua moldura real, no mais das vezes é movida muito mais pelo costume de assim atuar – costume tão ancestral quanto inexplicável, afinal de contas – dos que atuam nas lides do direito de família, do que pelas necessidades afetivas dos membros da própria família. Falamos em termos gerais, como deve mesmo ser, porque não há um só exemplo que dê conta da universalidade desta verdade, nem é possível esgotar, numa seqüência, a totalidade dos casos em que o peso destas curiosidades cabe.


O afeto, reafirme-se, está na base de constituição da relação familiar, seja ela uma relação de conjugalidade, seja de parentalidade. O afeto está também, certamente, na origem e na causa dos descaminhos desses relacionamentos. Bem por isso, o afeto deve permanecer presente, no trato dos conflitos, dos desenlaces, dos desamores, justamente porque ele perpassa e transpassa a serenidade e o conflito, os laços e os desenlaces; perpassa e transpassa, também, o amor e os desamores. Porque o afeto tem um quê de respeito ancestral, tem um quê de pacificador temporal, tem um quê de dignidade essencial. Este é o afeto de que se fala. O afeto-ternura; o afeto-dignidade. Positivo ou negativo... O imorredouro afeto.


O afeto está na construção, mas deve estar também na ruptura relacional, resguardando as pessoas para além daquela dose certamente incontrolável de sofrimento que não se pode impedir. E os que estão encarregados de administrar o conflito devem estar comprometidos com o respeito a esse afeto atávico. Sem medo. Sem preconceito. Municiados da necessária rede – redonda, oval, quadrada, retangular... cada um sabe construir suas próprias redes, porque, afinal, elas não passam de buracos amarrados por barbantes – para alcançar também os peixes dourados.

Ø
Pensando em concluir

Talvez fosse possível, a este passo, querer intentar uma certeza: a de que o afeto é o conceito que mais faz falta no universo prático, mas também teórico, do direito de família, já que ele corresponde à coisa mais essencial a constituir e a construir as famílias – de fato, laços de afeto, e não meramente laços de sangue ou laços patrimoniais.


O direito de família, enquanto é concebido como campo do direito civil responsável pela solução de conflitos entre membros de um conjunto de pessoas vinculadas por parentesco consangüíneo, quer na linha reta, quer na colateral, é um direito incompleto: enquanto não se permitir ser concebido como campo do direito responsável pela regulação das relações de afeto, a família presente na sua designação certamente continuará sendo uma instituição jurídica, mas ainda não conseguirá ser, de forma alguma, uma instituição humana.

A vida humana, meus caros pares, não se resume ao rio dos pescadores falantes do ictiolalês, porque ela é o rio e tudo o mais que existe no mundo, além do mundinho do rio. E, conhecido – ou reconhecido – o mundão fora do mundinho do rio (isto é, o campo inesgotável de saberes e discursos humanos nos quais o afeto é reconhecido como razão das relações familiares), no próprio rio será possível pescar melhor, e, da mesma maneira que um rio sem peixes dourados não é um rio absoluto, um direito de família sem a presença inequívoca do afeto não é um universo que faça sentido para a ética.


Aos familiaristas, por tudo isso, fica o convite a superarem o preconceito de conhecer o afeto. Fica o convite a conceber eticamente o direito de família e perceber o que é, enfim, esse afeto, essa atividade essencial no interior de todo ser humano que o define e o determina a ser o que é – principalmente em face dos demais, na ambiência da família.


No momento em que o direito de família conseguir dizer o afeto dentro de sua própria doutrina, aí, sim, estará efetivamente contemplando a pessoa humana no lugar do sujeito de direito. E será esta transformação que permitirá aflorar, no direito de família, uma concepção ética do ser humano.


Ao contrário, enquanto o direito de família prosseguir ignorando a urgência da transformação, enquanto escolher continuar silenciando acerca do afeto, tudo o que conseguiremos será o continuísmo de um tempo já descabido, tempo este que operou uma idéia inadequada acerca da humanidade, o que, na prática jurídica, foi apenas mais uma maneira de tratar a pessoa humana como se ela fosse uma singela coisa.

[1] A crônica referida pode ser encontrada nos seguintes sites (o primeiro deles a própria home page do autor): http://rubemalves.uol.com.br/ e http://www.geocities.com/spaprado/textosfilosofiaciencia.html
[2] Círculo de Viena: grupo filosófico fundado em 1924 por Moritz Schlick (1882-1936), liderado por Rudolf Carnap (1891-1970), reunido durante a década de 1920, em Viena, que se notabilizou pela formulação dos princípios do positivismo lógico, consistentes em uma busca de unificação para o saber científico e na determinação do critério de verificabilidade empírica como a distinção fundamental entre a verdadeira ciência e a metafísica (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete “círculo”). Sobre o “Círculo de Viena” – e para uma leitura rápida: http://www.cibernous.com/glosario/alaz/neopositivismo.html e http://www2.uah.es/estudios_de_organizacion/epistemologia/circulo_viena.htm
[3] Muito provavelmente, esta brecha está presente na fábula de Rubem Alves, que só aparentemente trata apenas de ciência.
[4] Rubem Alves, O que é científico (I)?.
[5] Porque a curiosidade, sem dúvida, é o fundamento de todo conhecimento científico, assim como de toda dúvida (se vai ou não chover no feriado) e outras tantas questões nucleares da vida comezinha.
[6] A respeito, recomenda-se a leitura do texto A afetividade como base do reconhecimento jurídico das entidades familiares, de Neiva Flávia de Oliveira, apresentado ao IV Congresso Brasileiro de Direito de Família (Belo Horizonte, 2003), disponível (a pedido) pelo site do Instituto Brasileiro de Direito de Família (http://www.ibdfam.com.br/). Neste texto a autora defende, com muita propriedade, a possibilidade de “uma concepção da família como conceito essencial e aberto em Direito de Família, que se concretiza na experiência social, na relação construída e particular dos gêneros masculino e feminino, sendo o poder, nessa relação, consubstanciado na vivência cotidiana, e não pressuposto pelas normas jurídicas ou pela teoria”.
[7] João Paulo Cunha, A ética do afeto, in Direito da Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia, coordenação de Giselle Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira, Rio de Janeiro: Imago, 2003, ps. 81-86.
[8] Estas propostas finais são aquelas que, melhor desenvolvidas, Fernando Dias Andrade, fez anotar em seu projeto de pesquisa destinado ao concurso para doutorado em direito, na Universidade de São Paulo (como requisito para os ingressantes em 2004), na área de direito civil – especificamente na área do direito de família –, sob a orientação da palestrante, Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka.


* Palestra proferida, ontem(24/09/09), no Palladium, por ocasião do II Encontro de Direito de Família - do IBDFAM - Sede Santarém.

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